quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Arte Xávega III - Evolução a partir dos anos 60, até à atualidade:

A Arte Xávega tradicional era uma actividade que necessitava de bastante mão-de-obra, em que cada "Companha" de pescadores costumava ter várias dezenas de pessoas a trabalhar.
Contudo, nos finais da década de 60 e princípios da década de 70, a Arte Xávega sofreu uma carência de mão-de-obra. Sendo uma actividade de rendimentos baixos, incertos e sazonais, perdeu muitos pescadores que nesta época optaram pela Emigração ou por procurar trabalho em outras ocupações profissionais mais bem remuneradas e estáveis que foram surgindo no país.
Paralelamente, nesta altura também surgiram no mercado motores de popa (ou motores fora de borda) a preços acessíveis.

Estes dois factores conjugados (a falta de mão-de-obra e o surgimento no mercado de motores fora de borda a preços acessíveis), conduziram a uma primeira revolução na Arte Xávega tradicional. Os novos barcos construidos a partir desta altura, adaptados para serem propulsionados a motor, diminuíram bastante de tamanho (uma vez que já não necessitavam de acomodar dezenas de remadores) e passaram a ir ao mar com tripulações reduzidas de 3 a 6 homens. Muitos barcos ainda conservaram um par de remos, para serem usados em caso de avaria do motor e para impulsionar os barcos durante os primeiros metros de entrada no mar, até a embarcação atingir uma profundidade suficiente para utilizar a hélice sem esta tocar no fundo de areia e pedras.

A Arte Xávega manteve-se assim durante aproximadamente 20-25 anos, até que em meados da década de 90 passa por uma segunda revolução, assente na mecanização. Foram introduzidos tratores especialmente modificados que permitiram libertar os homens e as juntas de bois/vacas (estas últimas desapareceram deste tipo de pesca) de grande parte do esforço físico que ainda faziam. Estes tratores modificados passaram a:
- Puxar as redes, através de cabrestantes/guinchos/molinetes (não sei a terminologia correta) montados na sua parte traseira.
- Empurrar os barcos para o mar, através de um braço articulado instalado à frente. Isto fez com que os barcos já não precisassem de utilizar os remos durante os primeiros metros da entrada no mar.
- Puxar os barcos do mar para a praia.
- Rebocar atrelados com diversas cargas.

Algum barcos foram dotados de rodas de automóvel para facilitar a sua deslocação na praia, quando empurrados ou puxados pelos tratores. Vários barcos deixaram mesmo de ter remos, enquanto outros ainda os conservam para utilizar em caso de avaria do motor ou por tradição.

Contudo, este período também trouxe novas adversidades à Arte Xávega, ao nível da Burocracia e Legislação Estatal, que por vezes não levam em conta as especificidades deste tipo de pesca tradicional. As regras rígidas do Estado, apesar de terem boas intenções como a conservação dos recursos marinhos ou a segurança alimentar, complicam bastante a vida aos pescadores que ainda resistem.

Qual será a próxima revolução da Arte Xávega, se sobreviver por mais algumas décadas? Talvez a inclusão de dispositivos eletrónicos? Talvez nos materiais? Já foram construídos barcos em fibra de vidro e alumínio (resistente à corrosão), substituindo a tradicional madeira e o ferro. Pelo menos um destes barcos já pesca na Praia de Mira há alguns anos!

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Arte Xávega II - À Moda Antiga.

A Arte Xávega tradicional praticada nos tempos antigos, até às décadas de 60 e 70 do século XX, apresentava algumas diferenças em relação à que actualmente ainda se pratica nas praias de Mira ou da Tocha, no Litoral Gandarez, bem como em alguns outros pontos da costa portuguesa onde ainda sobrevive. É essa antiga Arte Xávega que vou tentar apresentar ao leitor de forma resumida.

Nesses tempos remotos, os barcos eram bastante maiores do que agora (com o dobro, o triplo ou até mesmo o quádruplo do tamanho), para acomodarem tripulações numerosas de 15 a 50 homens durante as idas ao mar, sendo que a maior parte deles eram remadores que manuseavam os pesados remos da embarcação. Cada barco tinha um ou dois pares de grandes remos, que podiam necessitar de 4 a 10 remadores cada.

Para puxar ou empurrar estes pesados barcos do/para o mar, usavam-se carris móveis improvisados de madeira e troncos, sobre os quais as embarcações eram roladas na praia.

Se no mar o esforço braçal físico exigido aos pescadores era hercúleo, as tarefas pesadas a efectuar no areal da praia também não ficavam atrás. Por isso, em muitas localidades costeiras, as "Companhas" de pescadores passaram a usar várias juntas de bois/vacas para efectuar os trabalhos mais pesados em terra, como puxar as redes e colocar/recolher o barco no/do mar. Assim aconteceu na Praia de Mira (ou Palheiros de Mira), onde estas juntas de bois/vacas se tornaram bastante comuns.

Contudo, na Praia da Tocha (ou Palheiros da Tocha) não se adoptou o uso de juntas de bois/vacas nas tarefas da Arte Xávega, embora as carroças puxadas por gado bovino fossem utilizadas no transporte de materiais entre a praia e as localidades mais próximas. Quais as principais razões para isto? Confesso que não sei!

Mas penso que poderá ter a ver com razões de ordem logística. A Praia da Tocha dos tempos antigos era um lugar bastante isolado e de difícil acesso por caminhos arenosos no meio das dunas, que ficava a vários quilómetros de distância dos campos agrícolas e pastagens razoáveis mais próximas. Neste contexto, manter e alimentar em permanência várias juntas de bois/vacas na Praia da Tocha seria bastante difícil em termos logísticos. Ao contrário, na Praia de Mira, existiam campos agrícolas a poucas centenas de metros do areal, onde se podiam pastar bois e vacas ou cultivar plantas forrageiras.

Voltando à Praia da Tocha, e considerando o elevado esforço físico necessário para efectuar as tarefas da Arte Xávega, resultava que muitas vezes o número de homens da "Companha" era insuficiente para o trabalho necessário.

Por isso desenvolveu-se um sistema de "quinhão" na Praia da Tocha, em que qualquer "não-pescador" interessado em ajudar a puxar as redes (e outras tarefas), podia dar o seu nome (que era registado num papel), trabalhava juntamente com os pescadores e no fim recebia um pequeno "quinhão" variável de peixe, que dependia da quantidade pescada nessa ida ao mar.

Devido à utilidade do "quinhão" de peixe ou por simples curiosidade e vontade em participar, muitos eram os "não-pescadores" que colaboravam na Arte Xávega praticada na Praia da Tocha, fossem eles habitantes das aldeias mais próximas, amigos dos pescadores, forasteiros de passagem, curiosos, veraneantes ou turistas.

Deixo aqui alguns vídeos antigos retirados do Youtube, filmados em película nos velhos tempos do cinema a preto e branco, que nos dão um retrato fiel de como era a Arte Xávega à moda antiga:

Onde os Bois Lavram o Mar. Filme incompleto, filmado em 1959 na Praia de Mira (no Concelho de Mira).


Mudar de Vida. Filme português de 1966, realizado pelo cineasta português Paulo Rocha (1935-2012) (Clicar:). As cenas do filme que decorrem entre os minutos 34 e 41 da película, filmadas em 1966 na Praia do Furadouro (no Concelho de Ovar), dão um retrato bastante realista de como era a Arte Xávega nesta época.


Fishy Business In Portugal. Curta-metragem de actualidades cinematográficas, filmada em 1935 em Portugal.



Mais alguns vídeos retirados do Youtube:

Reconstituição parcial da Arte Xávega antiga na Praia da Tocha (Reportagem SIC):

Reconstituição em Espinho:


Reconstituição na Praia da Torreira (no Concelho da Murtosa):



Algumas fotografias dos painéis de azulejos existentes na Capela da Praia da Tocha (tiradas em Julho de 2007), que retratam cenas da antiga Arte Xávega que se praticava nesta localidade. Estes azulejos, baseados em fotografias antigas, foram pintados pelo Sr. Jorge Guerra, artista especializado neste tipo de trabalhos.
A primeira fotografia mostra o transporte de um barco de pesca recém-construído para a Praia da Tocha. Vários dos barcos que aí se utilizaram até meados do século XX, foram construídos num estaleiro artesanal que se situava na parte Noroeste do Largo da Tocha, na zona situada entre a Igreja e a Casa Paroquial.







 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Arte Xávega I - O que é a Arte Xávega?









I - O que é a Arte Xávega?


A Arte Xávega é uma técnica tradicional de pesca costeira de arrasto, por cerco, muito antiga, cuja origem, secular ou milenar, se perde na noite dos tempos. Actualmente encontra-se em risco de desaparecimento, numa fase de contínuo declínio que vem desde a década de 60.

Nos dias de hoje, esta arte piscatória ainda é praticada por algumas centenas de pescadores, em algumas localidades costeiras de Portugal, incluindo a Praia de Mira e a Praia da Tocha (ambas na Região da Gândara). Também ainda é praticada na Praia da Vagueira, no Concelho de Vagos, mas que não incluo na Gândara por já estar situada na Região Tradicional da(s) Gafanha(s). Também chegou a ser praticada no passado na Praia de Quiaios, no Concelho da Figueira da Foz.

Hoje tem um carácter sobretudo sazonal, sendo praticada essencialmente nos meses do Verão e do fim da Primavera, quando o mar se encontra mais calmo e abundam os clientes para o pescado (aproveitando a época turística).

Outrora muito praticada ao longo de toda a costa portuguesa, entrou em decadência nas décadas de 60 e 70 do século XX, tendo desaparecido de grande parte das localidades costeiras do país. Nos locais onde sobreviveu, passou por um processo de modernização tecnológica, que lhe permitiu trabalhar com um número bastante mais reduzido de pescadores, bem como poupar estes do esforço muscular hercúleo que lhes era exigido no passado. Apesar destas transformações, esta arte ainda conserva um carácter tradicional, em que sobrevive muita da herança histórica, cultural e social de tempos passados.



Há um século atrás, o panorama era bem diferente da actualidade, com muitos milhares de pescadores e centenas de barcos espalhados por muitas das localidades costeiras de Portugal, aproveitando cada trégua concedida pelo mar para pescar.

Como funciona a Arte Xávega?

Para ajudar à compreensão do funcionamento desta arte tradicional de pesca, coloco aqui duas figuras que fiz em 2013 (com umas modificações mais recentes). Alerto os leitores que estes esquemas foram feitos por mim baseados no que conheço da Arte Xávega (a partir do que que vi, li e ouvi ao longo da minha vida), por isso o seu rigor poderá ser objecto de algumas críticas por quem verdadeiramente conhece e pratica esta arte.

Os sucessivos passos de uma ida ao mar encontram-se descritos em sucessão numérica nas figuras seguintes, que aconselho que sejam abertas numa nova janela do browser no seu tamanho real:

1 - O barco, em forma de meia-lua, que se encontra na praia previamente carregado com centenas ou milhares de metros de cordas e redes, é empurrado para o mar. À medida que avança, vai desenrolando e colocando no mar uma corda, cuja extremidade fica solidamente presa no praia.
Durante esta fase perigosa, o barco segue a direito pelo mar adentro, cortando as ondas na sua zona de rebentação.

2,3 - Ultrapassada a zona de rebentação, o barco vira de lado e inicia um longo percurso no mar que o leva a quase completar um círculo (ou um "O"), ante de iniciar a manobra de regresso à praia. Vai continuando a lançar a corda ao mar.

4,5 - O barco começa agora a lançar a primeira metade da rede de pesca propriamente dita ao mar.

6 - O barco atinge a metade do seu percurso e lança ao mar o saco da rede, onde mais tarde ficará retido o peixe. Este saco é marcado por uma grande bóia, destinada a ser visível ao longe a partir da praia, que servirá de referência visual durante as manobras para puxar as redes.

7 - O barco inicia o seu percurso de regresso, enquanto vai colocando no mar a segunda parte da rede de pesca.

8 - É colocada no mar a segunda metade da corda.

9, 10 - O barco termina o seu percurso no mar em forma de quase círculo (ou um quase "O" ) e vira directamente a proa para a praia, entrando na zona de rebentação das ondas, iniciando a manobra de saída do mar.

11- O barco lança-se a grande velocidade em direcção à praia até encalhar na areia, sendo então preso com cordas e puxado para a praia, até ficar num lugar seguro fora do alcance da água do mar lançada pelas ondas na praia. Ao sair do mar, o barco traz consigo a segunda corda das redes. 

12 e Figura II - Processo de puxar as redes:
(Tarefa lenta, que costuma demorar entre uma a duas horas, dependendo das dimensões das redes de pesca utilizadas.)

Na praia, a partir dos dois pontos de entrada e saída do barco no mar (que podem distar algumas centenas de metros entre si), as duas cordas começam a ser puxadas lentamente. À medida que as cordas vão sendo puxadas em dois pontos diferentes da praia, um deles ou ambos aproximam-se do outro por fases sucessivas, para ir fechando lentamente a rede de arrasto que vai cercando os cardumes de peixe.

Quando acabam as cordas e as duas pontas da rede de arrasto chegam à praia, os peixes ficam encurralados no seu interior. Depois vão ficando progressivamente concentrados no saco da rede, à medida que o resto da rede é puxado para a praia.

Nesta altura final, as duas pontas da rede já estão a ser puxadas de locais muito próximos, quase lado a lado, até que finalmente o saco da rede é puxado para a praia.

Uma vez que a tradicional Arte Xávega não dispõe ainda de tecnologias piscatórias de ponta, como sonares para localizar os cardumes de peixe ou sensores nas redes, é apenas nesta fase que os pescadores finalmente conhecem o rendimento que lhes proporcionou cada ida ao mar trabalhosa, pois o saco tanto pode vir cheio de peixe como quase vazio. Esta é sempre a fase do processo que suscita mais emoções fortes na praia e que costuma reunir uma multidão de pessoas à sua volta, entre pescadores, clientes, curiosos e turistas.

Depois o saco da rede é aberto, o peixe retirado, separado por espécies em cabazes e encaminhado para o mercado por diversas vias.
 
Nota: A descrição que fiz anteriormente relata como funciona a Arte Xávega em termos genéricos. Contudo existem algumas diferenças entre a Arte Xávega do Passado e a da Actualidade, bem como existiram fases de transição e evolução nos anos 60 a 90. Para saber mais sobre isso, não perca os próximos capítulos:

Arte Xávega II - À Moda Antiga.
Arte Xávega III - Evolução a partir dos anos 60, até à atualidade.
Arte Xávega IV - A Arte Xávega no Presente.

sábado, 12 de setembro de 2015

Os Caniceiros defensores do Pinhal do Povo:

A aldeia da Caniceira é a localidade mais populosa da Freguesia da Tocha (no Concelho de Cantanhede), com aproximadamente 600-700 habitantes. Nesta localidade existe um monumento invulgar, situado ao lado da Estrada Nacional 109, que passa pelo meio da localidade, numa das suas rectas com vários quilómetros de extensão (uma característica própria desta via, que a torna conhecida no país). Apresento algumas fotos do local, tiradas em Dezembro de 2012, durante uma volta de bicicleta.

O monumento, intitulado "Aos Caniceiros, defensores do pinhal do povo", obra do escultor José Plácido, inclui quatro blocos de pedra encimados por bustos de figuras humanas, cada qual tendo consigo uma ferramenta de trabalho típica da Gândara antiga, nomeadamente uma forquilha, uma enxada, um machado e... um búzio. 

Um búzio! Um búzio é uma ferramenta?
Sim! Muitos habitantes da Caniceira dedicavam-se à Arte Xávega na Praia da Tocha. Esta "arte" é um tipo de pesca de arrasto costeira tradicional, que ainda sobrevive em algumas localidades marítimas de Portugal, incluindo a Praia da Tocha (ou Palheiros da Tocha) e a Praia de Mira (ou Palheiros de Mira). Neste tipo de pesca, o búzio era tradicionalmente tocado muitas vezes (produzindo um som parecido ao de uma trompa), para chamar os pescadores para a faina, para anunciar à população a ida ao mar, sendo igualmente muito útil nos dias de nevoeiro cerrado (com visibilidade quase nula), para orientar os barcos no mar a partir do seu som tocado na praia.

(É a história na génese deste monumento que vou tentar contar a seguir. Devo advertir o leitor que baseio o meu relato no que ouvi ao longo dos anos de pessoas idosas, uma vez que não conheço fontes escritas. Se algum leitor ou habitante local tiver uma versão mais fidedigna dos factos, esteja à vontade para usar a caixa de comentários para acrescentar o que julgar necessário.)

A actual floresta costeira da Gândara tem menos de um século. Antes, era formada por dunas arenosas, com vegetação escassa e onde as árvores eram raras. Durante séculos, as populações locais habituaram-se a utilizar essa zona para seu usufruto (como terrenos baldios de uso comum, o denominado Pinhal do Povo). 

Contudo, tudo se alterou nas décadas de 20 e 30 do século XX, quando o Estado Português empreendeu a florestação desta zona, para proteger os campos agrícolas e até algumas localidades da Gândara, ameaçados de serem lentamente soterrados pelo avanço das dunas de areia. Diz-se que a actual Vila de Quiaios esteve em risco de ser despovoada e abandonada, tal era a gravidade deste problema!

Contudo, após ter sido feita a florestação, o Estado pretendia ficar com a propriedade e gestão da zona da recém criada floresta, retirando às populações locais o usufruto e os direitos adquiridos que tiveram durante muito tempo. Obviamente, esta atitude autoritária do Estado causou um profundo descontentamento nas pessoas, que contudo acabaram por aceitar o facto consumado em todas as aldeias da freguesia.

Em todas, não, porque a Caniceira foi uma excepção! Numa data que desconheço, nesse período de 1920-1940, a população local resolveu armar-se com as suas ferramentas (os tais machados, forquilhas e enxadas representados no monumento), arriscando as suas vidas para enfrentarem os representantes do Estado e as forças da Guarda Nacional Republicana que os escoltavam, em defesa dos seus antigos direitos. Terão acontecido alguns confrontos violentos, com vários feridos, mas felizmente sem mortos a lamentar!

Graças à atitude da população da Caniceira, representada neste monumento, o Estado voltou atrás na sua atitude e cedeu alguns direitos às populações locais, nomeadamente a venda a cada agregado familiar de um grande terreno por um valor acessível (as Glebas florestais, cada uma com a área aproximada de um hectare), bem como a gestão da área florestal pública por uma "Assembleia dos Compartes".

A população da Caniceira era conhecida no passado pelo seu carácter peculiar, moldado por alguns séculos de vida dura e pobre num ambiente natural agreste, num isolamento que só foi quebrado pela construção da Estrada Nacional 109, em meados do século XX. (Recomendo dar uma vista de olhos nas imagens de satélite, para ajudar à compreensão do texto.) 
Nesses tempos antigos, a aldeia e seus habitantes eram denominados na região (sobretudo pelos habitantes de outras localidades rivais) pelos termos pejorativos de "Turquia" e "Turcos", "os tais que viviam isolados e quase não se davam com ninguém", que alegadamente recorriam com maior frequência à violência para resolver desavenças dentro e fora da aldeia, que afastavam os visitantes indesejados (incluindo os pretendentes externos à mão das moças casadoiras locais)! 
(Bem, este último comportamento na verdade era comum a muitas das aldeias da região! Há um século atrás, um jovem que fosse cortejar uma moça casadoira a outra aldeia rival, sobretudo nos bailes tradicionais, arriscava-se a uma "espera" (termo do calão tradicional que designa uma espécie de emboscada) e consequente enxerto de porrada, dado pelos jovens locais! Claro que existiam algumas excepções nos casamentos, mas o número de casais com esposos originários de locais diferentes era bastante menor do que na actualidade.)

Para melhor compreender este carácter singular dos antigos habitantes da Caniceira, recomendo a leitura do texto "A Justiça do Cacete Caniceiro", no Blog do Manel (clicar para aceder). Garanto que gosto mesmo deste texto, não faço a recomendação para bajular o seu autor!


The defenders of the people's pinewood:

The village of Caniceira is the most populous place of the (Civil) Parish of Tocha (in the Municipality of Cantanhede), with around 600-700 inhabitants. In this village, on the side of national road 109, there is an unusual monument, dedicated to "aos Caniceiros, defensores do pinhal do povo" (can be translated "to the inhabitants of Caniceira, defenders of the people's pinewood").
This monument was made by the portuguese sculptor Mr. José Plácido. I present a few pictures, taken in December of 2012, during a bike ride.

This monument is dedicated to the people of Caniceira, the only village in the (Civil) Parish where the population defended their rights to the "people's pinewood" (one big area of "common land"), around 1920-1940 (i don't know the exact date, because i don't know written sources about it, only heard something about it by older people), and they succeed,  with beneficts to them and to the people from other villages.


A century ago, the coastal area of the region consisted of sandy dunes, with little vegetation, only some grass and a few trees. This was the "common land", used during centuries by the inhabitants of the region.
In the decades of 1920 and 1930, the Portuguese State made an important public work of planting a coastal forest in this huge area (see the forest in the satelite images). This was done to protect the region from the advancing sandy dunes, who were threatening to bury agricultural fields and even some villages.

But after it, the Portuguese State wanted to become the only owner and manager of these lands, who were "common lands" before. The people of the area did not like this loss of rights, but they slowly accepted it as a "fait accompli". But the inhabitants of the village of Caniceira, were the only to try to defend their rights, picking their agricultural and fishing tools as weapons, and risking their lives confronting the public authorities and the national gendarmerie force.

There were scenes of violence, but  fortunately only with people injured, with no deaths to regret. After that, the State stepped back and made a few concessions, giving each family in the area the right to buy a big piece of land (the "Glebas") by an affordable price, and giving the population the right to participating in the management of all forest area, by a deliberative assembly.







Localização / Location:


segunda-feira, 29 de junho de 2015

Os movimentos migratórios da Gândara para a Península de Setúbal no século XIX – a origem de Pinhal Novo:

Nota do autor: o texto que se segue é da autoria da Sra. Célia Gomes, leitora deste blog, a quem agradeço a amabilidade de ter aceite o meu convite para o escrever. A Sra. Célia Gomes, residente na Freguesia de Pinhal Novo (no Concelho de Palmela), descende de antepassados Gandareses que se fixaram na Península de Setúbal no século XIX. 
É também a autora do interessante Blog Origens Caramelas, Raízes Gandaresas (clicar para entrar no blog), (também disponível no Facebook (clicar para entrar)), onde apresenta os resultados das suas pesquisas sobre os percursos de vida de alguns desses Migrantes Gandareses do passado. Na leitura deste blog, o Gandarez da actualidade irá certamente descobrir apelidos e locais de origem que lhe são familiares!
 
Os movimentos migratórios da Gândara para a Península de Setúbal no século XIX – a origem de Pinhal Novo:
 
No distrito de Setúbal, o termo “caramelos“ denomina os trabalhadores oriundos da região gandaresa que no passado se deslocavam para essa região sazonalmente, especialmente para realizar trabalhos rurais; com o decorrer do tempo, este significado alargou-se também aos seus descendentes. Não se conhece com precisão a origem desta significação da palavra “caramelos“; há quem defenda que assim se chamavam porque os jornaleiros gandareses chegavam em pleno Inverno, no tempo do gelo, que antigamente também se designava por caramelo, regressando às suas aldeias após as colheitas, no final de Junho; há também quem afirme que o vocábulo se deve à cor pálida destes trabalhadores, devido às “febres e terçãs“ de que padeciam cronicamente, provavelmente devido às águas das muitas lagoas da Gândara ou em consequência dos trabalhos nos campos de arroz. Da mesma forma, não é possível determinar cronologicamente o início dessas migrações sazonais. No entanto, um conceituado historiador local do concelho de Palmela, António de Matos Fortuna (1930 / 2008), encontrou um registo na paróquia de São Lourenço de Azeitão (concelho de Setúbal ), datada de 1613, referente ao batismo de um caramelo.

Posteriormente, em particular a partir do início do século XIX, assistiu-se à chegada de um grande número de trabalhadores gandareses ao concelho da Moita e arredores; se muitos desses trabalhadores regressavam às suas terras no final da época de trabalhos, a verdade é que volta de 1830, já viviam inúmeras famílias gandaresas na região, numa área que integra os concelhos de Palmela, Moita e Montijo. Mas é nos registos da Paróquia de Palmela, a partir de 1850 e particularmente após 1860, que comprovamos o movimento migratório massivo de gandareses que vieram estabelecer-se nesta freguesia, especialmente na área correspondente à atual vila e freguesia de Pinhal Novo.

É importante salientar que o Pinhal Novo não existia nessa época, era um território completamente despovoado, onde dois fatores fundamentais se conjugaram para dar origem a uma nova povoação que não parou mais de crescer até aos nossos dias: em primeiro lugar, a construção do primeiro troço de caminho-de-ferro a sul do rio Tejo (inaugurado em 1857), com passagem neste território; em segundo lugar, o casamento de D. Maria Cândida Ferreira Braga, Baronesa de São Romão (1815-1878), proprietária destas terras, com José Maria dos Santos (1831 / 1913), veterinário lisboeta, em 1857. Este abandonou a sua profissão para se dedicar à gestão das propriedades da mulher; impulsionado pelo caminho-de-ferro, que veio permitir o escoamento dos produtos agrícolas, este proprietário decidiu tirar o máximo proveito das suas terras; como a mão-de-obra era insuficiente, recorreu aos trabalhadores gandareses e do baixo mondego, fixando-os através de um processo de colonização de terras; segundo Oliveira Martins, José Maria dos Santos fixou “ 400 casais ocupando 2.000 hectares divididos em courelas de 4 a 6 hectares. Os colonos foram implantados por contratos de arrendamento e procedem da Beira. Pagam a renda de 1$000 reis por hectare “ [Martins, Oliveira (1956), Fomento Rural e Emigração, Lisboa, Guimarães Editores, pág. 47]. Quando faleceu, em 1913, José Maria dos Santos deixou as terras arrendadas, em testamento, aos seus rendeiros. Concluindo, a influência gandaresa impôs-se na região, na arquitetura das casas, nas tradições agrícolas, na gastronomia, no vestuário e na linguagem.

Pessoalmente, posso comprovar que os meus antepassados gandareses que se fixaram nesta zona foram essencialmente meus trisavós e quartos avós e todos se instalaram entre os concelhos da Moita, Palmela e Montijo, mas a maioria fixou-se precisamente na área de Pinhal Novo. A maioria veio das antigas freguesias da Tocha e de Cadima; outros, em menor número, vieram de Mira, Arazede, Ferreira-a-Nova e Quiaios. Tenho verificado que muitos dos apelidos observados nos registos paroquiais das freguesias gandaresas são vulgaríssimos no território de Palmela, Montijo e Moita. Por outro lado, muitos deles foram substituídos por alcunhas ou pelos topónimos de origem destes antepassados, os últimos dos quais são hoje relativamente comuns; como exemplos, posso citar os sobrenomes Amieiro, Cadima/Cadimas, Cantanhede, Carromeu, Mira, Pelixo / Pelicho, Ramalheiro, Seixo, Tocha. Finalmente, é importante salientar que as migrações dos gandareses para esta região não se limitaram a esta época, pelo contrário, elas estenderam-se pelo século XX, tendo como principal destino a grande Herdade de Rio Frio, que já foi considerada a maior da Península Ibérica, propriedade de José Maria dos Santos. O fenómeno das migrações dos gandareses para a região tem sido alvo de vários estudos, principalmente no Pinhal Novo, cuja Junta de Freguesia editou, nos últimos anos, uma coleção dedicada à história e às origens desta vila e freguesia, intitulada “ Origens e Destinos “. Uma das obras publicadas, da autoria de José Cabrita, intitula-se precisamente: “Entre a Gândara e a terra galega”.

Célia Gomes


Localização da Vila de Pinhal Novo, no Concelho de Palmela:


A Península de Setúbal:

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Os Moinhos de Água dos Cantos da Fervença:

Na aldeia dos Cantos da Fervença, no Concelho de Cantanhede, existe um pequeno núcleo de moinhos de água, composto por três edifícios distintos. Todos aparentam estar bem cuidados, tendo passado por obras de conservação em anos recentes.

Pelos dados de que disponho, penso que a aldeia dos Cantos da Fervença está actualmente integrada na Freguesia de São Caetano, embora tenha feito parte da Freguesia de Cadima até há poucos anos atrás. Por curiosidade, nesta zona do Concelho de Cantanhede existem três aldeias vizinhas com nomes relacionados, mas pertencentes a três freguesias distintivas: Fervença (Freguesia da Sanguinheira), Olhos da Fervença (Freguesia da Cadima) e Cantos da Fervença (Freguesia de São Caetano)! Singularidades das divisões administrativas portuguesas!

Neste post apresento um vídeo e várias fotos destes moinhos, realizados a partir de imagens recolhidas em Dezembro de 2012 e Outubro de 2014, em ambas as ocasiões durante caminhadas matinais de algumas dezenas de quilómetros, que me permitiram enriquecer bastante o meu espólio fotográfico pessoal. Dois dos três sons que incluí neste vídeo (sons de água a fazer funcionar um moinho), foram obtidos na caminhada de Dezembro de 2012, no único moinho de água que ainda se encontra em funcionamento na vizinha localidade dos Olhos da Fervença. (Clicar para ver o post sobre este moinho e o respectivo vídeo!)

Na segunda caminhada matinal, em Outubro de 2014, encontrei um dos moinhos aberto e em funcionamento. A sua proprietária e/ou moleira, uma senhora idosa cujo nome desconheço, foi simpática e permitiu-me filmar o interior do moinho em funcionamento. Nessa ocasião, o moinho estava regulado para produzir "milho partido", ao invés de farinha, como é normal nos moinhos. Esta é um produção alternativa que vai permitindo manter alguns dos moinhos da Gândara em funcionamento, quando as encomendas para produzir farinha escasseiam.

O "milho partido" é obtido quebrando o grão em apenas alguns pequenos pedaços, ao contrário da farinha, em que o grão é reduzido a pó. Este milho partido é utilizado na criação de aves domésticas (galinhas, patos...), como primeiro alimento das aves durante as suas primeiras semanas de vida, quando ainda não conseguem comer os grãos de milho normais, grandes de mais para os seus minúsculos bicos.

Para finalizar o artigo, refiro que nas proximidades destes moinhos existe uma curiosa ponte pedonal (ver as últimas duas fotos), bastante conhecida entre aqueles que costumam fazer caminhadas ou praticar BTT nesta zona.


The Watermills of Cantos da Fervença:

In the village of Cantos da Fervença, in the Municipality of Cantanhede, there is a small group of water mills, composed by three distinct buildings. All appear to be well maintained.

From the data I have, I think the village of Cantos da Fervença is currently part of the Civil Parish of São Caetano, although it has been part of the Civil Parish of Cadima, a few years ago. Out of curiosity, in this area from the Municipality of Cantanhede, there are three neighboring villages with related names, but belonging to three different civil parishes: Fervença (Civil Parish of Sanguinheira), Olhos da Fervença (Civil Parish of Cadima) and Cantos da Fervença (Civil Parish of São Caetano)! Singularities of the Portuguese administrative divisions!

In this post I present a video and several photos of these watermills, made from images collected in December 2012 and October 2014, in both occasions during long morning hikes, in which i took lots of photographs in different places. Two of the three sounds included in this video (the water sounds), were obtained in the hike of December 2012, in the only watermill still in operation in the nearby village of Olhos da Fervença. (Click here to see the post about this watermill,  also with a video!)

During the second morning hike, in October 2014, I found one of the mills open and running. The miller, an old lady whose name i don't know, was friendly and allowed me to film the interior of the mill, when it was working. At that day, this watermill was set to produce "milho partido" (can be translated to "broken corn"), instead of flour, as it is normal in the watermills or windmills. This is an alternative production, that allow to keep some of the watermills in operation, when there are no orders to produce flour.

The "broken corn" is obtained by breaking the grains in only a few small pieces, unlike flour, where the grains are reduced to powder. This "broken corn" is used in the traditional poultry production (chickens, ducks...), as the first food of the birds, during their first weeks of life, when they can not eat normal corn, since the grains are too large for their tiny beaks.

Near the watermills, there is an odd and narrow pedestrian bridge (see the last two pictures)!






























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